terça-feira, 6 de dezembro de 2011

POEMA DE ADÉLIA PRADO

                                                         "Amor vencedor", Caravaggio
                                
                                                 CORRIDINHO


                                                                        ADÉLIA PRADO




                                O amor quer abraçar e não pode.
                                A multidão em volta,
                                com seus olhos sediços,
                                põe caco de vidro no muro
                                para o amor desistir.
                                O amor usa o correio,
                                o correio trapaceia,
                                a carta não chega,
                                o amor fica sem saber se é ou não é.
                                O amor pega o cavalo,
                                desembarca do trem,
                                chega na porta cansado
                                de tanto caminhar a pé.
                                 Fala a palavra açucena,
                                 pede água, bebe café,
                                 dorme na sua presença,
                                 chupa bala de hortelã.
                                 Tudo manha, truque, engenho:
                                 é descuidar, o amor te pega,
                                 te come, te molha todo.
                                 Mas água o amor não é.
                                 



                              

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

MINI_CONTO: CASAMENTO

         Na hora do casamento, já vestida, maquiada, preparada, saiu da igreja lentamente enquanto o padre falava. Sob os olhos pasmados de todos, caminhou lentamente até lá fora. O noivo ficou parado. O padre parou de falar.Ninguém teve coragem de se mexer. Então ela desceu os degraus da escada da igreja e se deitou no chão gramado com braços e pernas abertas.Sob o olhar embasbacado de todos. E sentiu a brisa na pele e sorriu.O noivo aproximou-se e deitou também. E sorriram. Então todos se deitaram na grama sorrindo. O padre também. E perceberam que na grama, sob o sol e em contato com a brisa, ouvindo os pássaros, a união era mais linda.Levantaram-se com grama pelas roupas, pouco recompostos.E voltaram para a igreja sorrindo e dançando com a noiva e o noivo. Então todos se casaram com os noivos.E foram felizes para sempre.(FRANCISCO CARVALHO). A PARTIR DO FILME "MELANCOLIA" DE LARS VON TRIERS

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

POEMA ESCOLHIDO

                     
                                 SILÊNCIO AMOROSO 1



                    Deixa que eu te ame em silêncio.
                    Não pergunte, não se explique, deixe
                    que nossas línguas se toquem, e as bocas
                    e a pele
                    falem seus líquidos desejos.


                   Deixa que eu te ame sem palavras
                   a não ser aquelas que na lembrança ficarão
                   pulsando para sempre
                   como se amor e vida
                   fossem um discurso
                   de impronunciáveis emoções.
      (AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

MINI-CONTO: FIM

          Quando ela se foi o muro lá fora desapareceu. Assim que no dia seguinte ele se levantou, o guarda-roupa tinha sumido. Chorou um pouco, mas se conformou quando viu que uma das paredes do quarto também não existia mais. Porque ela se foi a cada dia sumia algo: as janelas, quase todas as paredes, o telhado já não existia, nem sequer as portas, não havia o chão. Chorou mais um tanto, porque o céu e as árvores escafederam-se, porque as cores das coisas sumiram, depois as próprias coisas viraram nada. Um vazio de tudo cercou-o porque ela foi embora. E ele se sentou e chorou. Só ele ficou.(FRANCISCO CARVALHO)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

MINI-CONTO: RITUAL POR UM ROSTO

       Naquele dia colou fotos dele nos postes todos da cidade.Depois, as mesmas fotos do rosto dele ela afixou em quase todos os muros, mandou fazer até um outdoor com aquela face. Ainda assim, de um helicóptero lançou milhares de fotinhas do rosto levemente barbado de seu namorado. Desesperada, imprimiu aquele rosto nas camisetas de todos os passantes das ruas todas. Enlouquecida, tatuou-o no corpo quase  todo. Fez com que no MASP as obras fossem trocadas por variações do rosto do namorado,  em todos os estilos, de todos os séculos. Nos canais todos de tv passava o rosto levemente barbado de seu namorado.
       Não era o fim de um amor, não era a busca pelo amante que se foi sem deixar notícias. Era simplesmente a celebração da beleza do rosto dele, de cada célula, de fios da barba, do nariz aristocrático de Ashton Kutcher, das nuances e trocas de luz sobre a pele do rosto. Era a celebração do sorriso do namorado, sorriso entre tímido e escancarado, mas devastador. Era o grito pela beleza negra de seus olhos, que prometiam e recusavam, olhos de ressaca. Não, as fotos não eram por uma busca, eram já por um encontro, que o rosto lindo do namorado dela era para ser celebrado, festejado. Como se festeja a leitura de um poema de Neruda,  como se celebra um mar calmo, como se abisma diante da cena inicial de "Morte em Veneza" de Visconti, como se encanta com a simplicidade e profundidade de "Cajuína" de Caetano Veloso. Um rosto é pra ser celebrado. (FRANCISCO CARVALHO)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

"ESCLEROSE AMOROSA" (POEMA DE AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA)

                          O que fazíamos no leito?
                          De tua voz já nem me lembro.
                          Tuas pernas dissolvem-se na neblina.
                          Havia uivos de gozo?
                          Nem dos seios sei exatamente.

                          O que eu fazia? O que fazias?
                          Ah!uma vaga lembrança
                          a que nem amor eu chamaria.
                          No entanto, parece que eu sofria.
                          Sofria?
                          Já não me lembro por que sofria.
(Pintura: "Tempestade de neve", Turner, 1842)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"O GATO" (POEMA DE MÁRIO QUINTANA)

              O gato chega à porta do quarto onde escrevo
               Entrepara...hesita...avança...


              Fita-me.
              Fitamo-nos.


              Olhos nos olhos...
              Quase com terror!
         


             Como duas criaturas incomunicáveis e solitárias.
             Que fossem feitas cada uma por um deus diferente.


            

terça-feira, 4 de outubro de 2011

ILUSÕES DO MUNDO

 "O CANSAÇO DE TODAS AS ILUSÕES E DE TUDO O QUE HÁ NAS ILUSÕES - A PERDA DELAS,A INUTILIDADE DE AS TER, O ANTECANSAÇO DE TER QUE AS TER PARA PERDÊ-LAS, A MÁGOA DE AS TER TIDO, A VERGONHA INTELECTUAL DE AS TER TIDO SABENDO QUE TERIAM TAL FIM."   

          (FERNANDO PESSOA, COMO O MAIS DOLOROSO DOS HETERÔNIMOS: BERNARDO SOARES)

POEMA DE JOSÉ PAULO PAES

                                         DECLARAÇÃO DE BENS
                                     
                                                                         JOSÉ PAULO PAES



                                        meu deus
                                        minha pátria
                                        minha família


                                      
                                       minha casa
                                       meu clube
                                       meu carro



                                       minha mulher
                                       minha escova de dentes
                                       meus calos
                                      


                                       minha vida
                                       meu câncer
                                       meus vermes



                                     
                                     

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

MINI-CONTO: REDAÇÃO INFANTIL

                                        Para Matteo, sobrinho que o titio ama
             bobóbobóbobóbobóbobóbobóbobóbobóbobóbobóbobóbobó(quando via uma moto)

       Quando abri os olhos vi papai e mamãe.Não podia ver mais nada.A luz estava neles, isso é dar à luz.Eu trouxe esses seres ao mundo assim que saí da barriga.Papai e mamãe nasceram.Os olhos dela fui eu que fiz,tão doces ao me olhar naquela hora no hospital.E a cada dia papai crescia, esperto, rindo, me filmando. Ele já mexia suas mãozinhas, balbuciava bobó pra mim sem ainda saber falar. Quando nasci eles ainda eram manchinhas estranhas.Logo mamãe começou a falar mamã, foi uma revolução. Logo papai começou a andar,não engatinhava mais ao meu lado. Assim que ficaram mais espertos eu ensinei papai e mamãe a por comida na minha boca. Eles fizeram certinho.Quando não acertavam eu chorava e brigava, eles aprendiam. Mas eu ainda fiz papai e mamãe me amarem, foi fácil. Porque eu amei os dois assim que os vi nascerem, tão fofos que dava vontade de apertar as carinhas. Agora que eles cresceram, eu os levo pra passear no parque e eles se divertem. É tão bom ter criado papai e mamãe juntos.Eles crescem cada vez mais espertos, sapecas, risonhos.Já aprenderam a dirigir e me levam pra todo lugar. Eu não vejo nada, só eles. Eu finjo que os lugares são bonitos mas na verdade eu estou olhando pra eles. Não quero esquecer o rosto desses seres que eu fiz nascer. O mundo é papai e mamãe. E o resto.(FRANCISCO CARVALHO)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

terça-feira, 20 de setembro de 2011

MINI-CONTO: VIRAR PALAVRAS

     Quis ser como os personagens de mini-contos, que geralmente só existem com sílabas, acentos, fonemas, palavras.Tudo em volta deles era palavras e linhas.Tão mais fácil e lindo viver assim.Despediu-se das aulas, nunca mais veria o Jardim Colombo a não ser em letras.Avisou Paula, Flávio, Thiago e Isabella.Comunicou à Mariza que seria palavra.Ninguém entendeu esse desejo de virar letras pretas de mini-conto. Estendeu e abriu livros no chão da sala, absorveu a tinta, o corpo letrou. Poros e pontos, pelos e vírgulas, bocas e os.Meu Deus, num conto é possível ser palavra, e me pontuar, pensou.MAIÚSCULAS, minusculas,itálicos.Passou a viver como letras e com letras. A realidade não existe a não ser nas palavras. Para ser é preciso ser palavra. Assim corre o mundo, filosofava. E nunca mais voltou ao pobre mundo.Porque é do mundo pobre que se escreve. E se finge virar palavras.Palavreei.(FRANCISCO CARVALHO EM PALAVRAS)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

FOTO MARAVILHOSA

Foto de Michael kenna: "Five Poles", 2003, Galerie Camara Obscura.

MINI-CONTO: FÁBULA

    Desejou ser alguém.Nasceu de mãe, surgiu no mundo, virou gente. Quis ser mais e fez universidade. Depois quis a beleza física, mas já tinha.Ainda quis a saúde.Como querer o que já possuía ? Pediu inteligência, mas sempre a teve. Pediu amor, mas já tinha, de tudo e todos que o rodeavam. Tudo que possuía era demais. Como a vida:  beleza superior, saúde, inteligência, amor total de todas as formas e espécies. Então sentou-se e desistiu do mundo. Ter era não ter. Começar tudo de novo. Desejar ser alguém, nascer, surgir no mundo. Fazer universidade. Ter beleza física e amor. Casa pra morar, ganhar dinheiro.Mas como? Sentado, desistindo do mundo. Então se levantou e desejou ser alguém, nasceu de mãe, teve casa pra morar, amou os amores de amar.E percebeu que assim era. Que continuava. Que se conquistava aos poucos, pensou. Insatisfação, prazer, prazer da insatisfação. E recomeçou para descobrir. E viveu.  (FRANCISCO CARVALHO)

"PRESENTE VIVO"(poema de Affonso Romano de Sant'Anna)

     Viver
     é conjugação diária
                                 do presente.

     Viver é presentear.
      Mais que um jeito de doer
      é um modo de doar.

     E um presente
     mais que um objeto
     é um elo entre dois olhos
     a floração do gesto
     o prateado evento
     e o cristalino afeto.

     Não se dá
     apenas pelo prazer
                                de ver
     o outro receber.
                            Dá-se
     para que o outro
     entre-abrindo-se ao presente
     também dê.

sábado, 10 de setembro de 2011

MINI-CONTO: FACA NO CORPO

  "Qué ruído tan triste el que hacen dos cuerpos cuando se aman" (Luis Cernuda)                                                                                  Definir uma faca é pelo ângulo de afiação.É sentir o poder de corte, o brilho da lâmina, é observar a prata fria e fina no poder do movimento.A faca se movimentou seis vezes no corpo dele.Esse instrumento perfurou a carne em todas as suas camadas.Ela não sabia se a lâmina era de aço de carbono ou de aço inoxidável, apenas a pegou na gaveta. Enquanto ele dormia,avaliou com amor cada poro, cada pelo.E a suavidade dos mamilos.Assim ele não ficaria com ninguém.Não nascemos para morrer? As facas ficam ali na gaveta com os garfos.Toma-se um bombril e se lava sua lâmina, vermelha não de maçã.Enxuga-se com o pano de prato com cerejas desenhadas.E se senta ao lado do amado, e se espera.Ninguém mais gozaria esses olhos.Essas mãos não tocariam ninguém.Essa a conquista da felicidade suprema, da transcendência. E esperar.Uma faca guardada na gaveta.  (FRANCISCO CARVALHO)                                                                                                                                                                

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

MINI-CONTO: ANJOS SUICIDAS

  Combinaram de se suicidar juntos.Os olhos baixos lacrimejavam, as mãos tremiam, geladas.Era de madrugada e vestiram asas de anjos compradas na 25 de março.Porque iam pular.Da ponte.Na Marginal Pinheiros.Banharam seus corpos com sabonete Lux.Ele abriu a boca para falar, ela pôs o dedo impedindo. Suicídio: a atração pelo nada segundo Albert Camus.O não ser mais.Pedro Nava se suicidou, Tchaikovski se matou, Hitler tirou a vida, Kurt Cobain teve coragem.Van Gogh. Agora eles,com asas de anjo, roupas brancas.Tomaram o ônibus.Todos olhavam os dois anjos em pé no corredor do ônibus.O coração batia quando desceram e viram três mendigos, sujos, dormindo sob cobertores imundos. Dos postes descia uma luz de cinema.Não falavam. Como tinha sido o momento final de Kurt Cobain? A calçada tinha vários sacos de lixo.Comeram uma barra de chocolate comprado no camelô pela manhã.O direito de morrer bem.O pacto forte quando se deram as mãos, chorando, prontos para pular.O susto com o miado de um gatinho cinzento, que olhava para eles com carinho.Pode estar nos olhos de um gato o sentido da vida?Ficaram acariciando o felino, sem falar.E o levaram para casa.Amanhã tentariam de novo ir para o nada.Como fizeram durante quatro anos.O nada que é tudo. 
(FRANCISCO CARVALHO)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"PAN-CINEMA PERMANENTE" :O POETA WALLY SALOMÃO NOS ALTERA


   Já falei aqui que é difícil encontrar bons filmes documentários sobre poetas.Mas um dos melhores é "Pan-cinema permanente", de Carlos Nader, sobre seu amigo e poeta Wally Salomão, filme de 2008.Wally é um grande poeta que nasceu/apareceu em Jequié e morreu/saiu de cena em maio de 2003.Cena é a palavra apropriada para falar desse poeta. No filme e na vida, Wally encena constantemente um personagem para si.Fala sem parar, verbaliza, gesticula.Alterar é a palavra-chave, alterar a percepção, a visão de mundo.Desde seu primeiro livro,"Me segura qu'eu vou dar um troço", de 1972, ele vem encenando/vivendo/performanceando a vida.Fez letras de músicas como "Vapor barato", com Jards Macalé, dirigiu discos de Cássia Eller, participava de ONGS, ajudou Gilberto Gil quando ministro da cultura.Wally era tudo e um pouco mais.O jornalista Cléber Eduardo, numa crítica, assinala que no filme tenta-se mostrar momentos de descontração do poeta, mas Wally encena o tempo todo, gesticula, faz um personagem, revela-se escondendo-se.O amigo Carlos Nader faz um poema cinematográfico em homenagem ao poeta Wally, acompanhando-o em diversos momentos de sua vida, pelo Brasil e pelo mundo.E nos mostra que a palavra é o "dom" desse baiano, a palavra que aparentemente brota fácil,jorra, inunda toda uma vida e a vida de seus leitores-fãs.No trecho inicial do poema "Devenir, devir" ele diz:"Término de leitura/de um livro de poemas/não pode ser o ponto final." Término de ver um filme como "Pan-cinema permanente" faz você não ser mais a mesma pessoa, alterou como ele queria. Quem ainda não viu, precisa assistir e se divertir com a personagem quase quixotesca e maluca que é Wally. No final do poema acima citado, ele nos chama, alerta: "Leitor, eu te proponho/a legenda de Goethe:/morre e devém./MORRE E TRANSFORMA-TE". Assista ao filme e transforma-te.
(FRANCISCO CARVALHO)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

MINI-CONTO: AQUILO

     

Naquele dia o sol caiu sobre o seu corpo como nunca tinha caído.E o vento acariciou seus contornos de treze anos. Espinhas, cravos e pústulas brotavam no rosto, avermelhando a vida. Braços longos, pernas curtas, olhos curiosos. Nunca tinha visto a areia da praia assim, tão humana.Ali sozinho na praia, deu cambalhotas na areia.Aquilo.Não era mais criança, o sangue corria de outra forma nas veias, inaugurando o mundo. Nunca a cor do mar fora tão azul.E o sol dava alegria, fazia sorrir, pular, começou a cantar e parou.Ele se sentou. Treze anos já. E tinha dado seu primeiro beijo numa menina.Aquilo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

MINI-CONTO: CARPE DIEM



Naquele dia, quando se levantou, percebeu que estava morto.Tocou-se,ainda parecia ter carne.Levantou-se e foi até o espelho.Ainda estava ali, não era um vampiro.Então a morte é continuar sendo? Se era assim, melhor tomar banho.Que delícia a água quente, a beleza das gotículas na pele! Que maravilha, nunca percebida pela pressa, a maciez da toalha no corpo! Vestir a roupa,que atividade prazerosa! Morrer é continuar sendo...Mas ,se morreu, não ir ao trabalho.Não fazer nenhuma ação que não fosse prazer, vida após a morte.Ah, a brisa fresca no Parque do Ibirapuera, ah o movimento dos carros, ah um papel de bala levado pelo vento, ah o olhar daquela mulher que passou rápido, ah o céu tão azul.Ohhhhh um besouro morto na calçada, ohhhh mendigos sujos encostados na parede,ohh o cinza da cidade. Tudo isso não era vida dentro da morte ? Descobrir a luminosidade nas dobras de uma cortina, perceber a beleza na feiúra, vislumbrar/ouvir o som de uma porta que se abre.Apenas caminhar apreciando tudo.Morrer é ver tudo de novo sem ser Brás Cubas.É meio-dia e o sol vara todos os prédios e todas as plantas. São cinco horas e dá pra ver o silêncio. Já é noite e as paredes se apagam de vida.Então voltar para casa, deitar-se.Amanhã encontrarão o cadáver.

UM POETA


O público em geral está acostumado com os poetas mais tradicionais, aqueles "aprendidos" na escola.Mas é sempre interessante conhecer outros bons e deliciosos poetas.Affonso Romano de Sant'Anna é um desses.Começou carreira entre o final da década de 50 e início de 60, deu aulas na UCLA(Califórnia),dirigiu o Departamento de Letras da PUC/RJ, substituiu Carlos Drummond de Andrade como cronista no Jornal do Brasil,diretor da Biblioteca Nacional, e muito mais.Mas acima de tudo foi um grande poeta.A editora L&PM lançou antologia de bolso de seus poemas:"Poesia Reunida".Se ainda não conhecem,melhor conhecer antes de morrer.Em várias bancas da cidade de São Paulo seus poemas estão espalhados, que poesia deve se espalhar assim.Um poema:" PEDES EXPLICAÇÃO/ Pedes explicações, que não sei dar,/sobre meu jeito de amar./Soubesse das razões por que te amo/deste modo/poderia também me apaziguar./Sou assim:/um gato na poltrona/aos teus pés/ou um tigre que, faminto,/carinhosamente/-vem te devorar". Mas não é só da temática amorosa os variantes temas do poeta.Outro poema curto: "VIVA FERA"/Não me canso de estudar a morte./Como é fértil e reverbera novos ângulos/conforme a hora em que a entrevejo/na minha trajetória.//Preencho-a de significados vários./Ela cresce, me fascina, me enriquece,/me habita viva feito fera/que parece domesticada e,no entanto,/soberana/-mansamente me devora". É melhor correr pras bancas!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

FILMES SOBRE POETAS

  

    Fazer documentários sobre poetas brasileiros é sempre algo complicado. Além de serem raros, existe sempre a tentação de biografar apenas, dando privilégio ao autor e não ao texto. Aconteceu, por exemplo, com o filme sobre Vinícius de Moraes, "Vinícius", de Miguel Faria Jr. ,em que se privilegia a biografia do autor, carregando no estilo depoimentos de famosos sobre.Muitos outros seguem por essa linha, provavelmente porque seus diretores nem leram o autor ou não acreditem ser possível lidar com poesia e audiovisual.Pode-se pensar ainda que é mais comercial trabalhar com as vidas polêmicas de autores do que com os textos.Pois esses diretores estão errados. O documentário "Só dez por cento é mentira", de Pedro Cezar, demonstra que é possível retratar um poeta dando espaço maior para seus textos.Pablo neruda, poeta chileno, dizia que os poetas não têm biografia, que a biografia deles era sua obra. Entendendo essa questão, o diretor Pedro Cezar filma a obra-biografia de Manuel de Barros, dando destaque total aos poemas. Parte de uma "biografia inventada", como quer o próprio poeta, daí a justificativa do título tirado de um verso de Manuel. Os versos são escritos na tela e o leitor vai lendo, maravilhando-se com o texto. Com isso, foge-se de usar o clichê de por algum ator lendo/declamando .Como fundo, closes generosos em lápis coloridos sendo apontados para escrever poemas, closes em cascas de árvores, a câmera caminhando por paredes velhas e emboloradas, closes em musgos, latas velhas de sardinha, pneus velhos. Segue a ideia do poeta: "só as coisas rasteiras me celestam". Os especialistas aparecem dando sua opinião mas não são identificados, fugindo de um intelectualismo que talvez Manuel odiasse. E o diretor consegue a proeza de entrevistar o poeta, que geralmente não concede entrevista.O filme é chamado de desbiografia.E consegue, com recursos audiovisuais mais o texto, dar uma ideia da grandeza/pequenez desse poeta. Não deixe de assistir.Já existe em dvd.

terça-feira, 19 de julho de 2011

As mil e uma noites


Rugas, imensos sulcos de deserto. Naquela madrugada, a velhinha de 89 anos levantou-se da cama, encolheu-se de frio e morreu indo até o banheiro. Foi ainda na mesma hora que João, 73, e Maria, 89, acordando, abraçaram-se com medo da solidão. Nesse exato momento da noite, o cãozinho velho tentou afastar uma pulga do corpo já carcaça. E ninguém viu que nos olhinhos dele havia a maior dor do mundo. 
Esmeralda se pintava, aos 90 anos, em frente ao espelho, de madrugada. Queria dormir linda. Nessa noite Teodoro, no asilo, mijou na calça, mas não teve vontade de levantar, as mãos trêmula, os olhos vesgos abertos sempre. Aquele momento também foi o de Parecida, rezando o terço, tomando água benta para dormir, olhando para o crucifixo na parede, com medo de morrer. Velho como estava, Teobaldo deitado, nessa madrugada, sentia falta de ar. Levantava, caminhava sozinho pelos cômodos até se cansar, depois dormia. Na mesma noite,Senária, que era velha e morava sozinha numa imensa casa de dois andares, acendia as luzes de cada cômodo. Ela dizia que a morte, à noite, só vem no escuro. Com 64 anos, Frasquino preparou calmamente o veneno. Os filhos agradeceriam que o velho inválido moresse e os livrasse dos custos de remédios e internações. Veneno é vinho: tomou. Serena disse que, aos 77 anos, gostava de levantar na madrugada e abrir a janela e ver as luzes dos prédios, os poucos carros e o silêncio. Depois pensa em se atirar do 15º andar, mas adia sempre para o dia seguinte. De longe vem o solo de saxofone. A madrugada envelhece, aquela fronha, enruga os lençóes, tira a cor das peles.

Francisco Carvalho

segunda-feira, 18 de julho de 2011


" Oswaldo de Andrade declarou num poema: "Aprendi com meu filho de dez anos/Que a poesia é a descoberta/Das coisas que eu nunca vi." Esse pequeno grande poema de Oswaldo é um catecismode poesia. Precisamos de aprender ignorâncias, nesse sentido de ver as coisas pela primeira vez com o mesmo assombro das crianças e dos primitivos."


(Do livro "Manoel de Barros" da Azougue Editorial)

"Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem."

Manoel de Barros




"Função da poesia é encantar palavras. Poesia é a loucura das palavras. Mesmo que pegar moscas no hospício para dar banho nelas. O mesmo que conversar com paredes".

Manoel de Barros

O mundo do poeta

 


"O mundo de um poeta é quase sempre contaminado de sua inocência animal. Seu olhar é verde para as coisas. Verde de beijar as flores, de beijar as fêmeas, de tocar as águas. O sentir do poeta é penetroso"


Manoel de Barros
"Acho que todo poeta tem um menino nele que fantasia com palavras"

Manoel de Barros

Poesia

"A mim me parece que é mais do que nunca necessária a poesia. Para lembrar aos homens das coisas desimportantes, das coisas gratuitas".

Manoel de Barros

Caracol


"Caracol é uma solidão que anda na parede"

Manoel de Barros

Espalhar poesia



Poesia hoje não se lê, se espalha. Os poemas (ou trechos deles) estão na internet, nas agendas, nos diários, nas letras de músicas. Não se deixou de ler ou de escrever poesia. Apenas se fugiu de uma visão clássica e aristocrática da poesia como dádiva dos deuses a determinados autores que escrevem para um específico público muito culto. Pablo Neruda, conhecido poeta chileno, aproxima seu fazer poético das mais simples atividades cotidianas no livro Para nacer he nacido: "Eu fui um apaixonado por estas criações anônimas e me catalogo, às vezes, enquanto à minha poética, como oleiro, padeiro ou carpinteiro. Som mão não existe o homem, não há estilo. Pretendia sempre que minha poesia fosse artesanal, antilivresca, porque até os sonhos nascem nas mãos" (tradução minha). Se a poesia é algo assim tão simples, tijolo saindo da mão do oleiro, pão amassado pelas mãos de um padeiro, cadeira-mesa-cama que a mão do carpinteiro elabora, por que deverá pertencer a uns poucos? Se é tão vital quanto o tijolo, o pão, a cadeira, é possível viver sem ela?

É então que ela se espalha. Os pães todos comerão, o tijolo construirá todas as casas, todos se sentarão em cadeiras. Poesia é para espalhar, como sementes. Trocar no facebook, escrever trechos e dar para os amigos, comprar em edições baratas, reler até os versos ficarem parte da gente, correrem pelas veias.
O poeta Manoel de Barros, tão padeiro quanto Neruda, disse que "poesia é para incorporar. Porque é nos sentidos que a poesia tem fonte". E disse ainda que "poeta não é necessariamente um intelectual; mas é necessariamente um sensual. Pois não é ele quem diz eu-te-amo para todas as coisas?".
 








E todos podem e devem sentir e incorporar a poesia: os que ouvem os versos do cantador nordestino, aqueles que reparam na letra da música, os que recebem por e-mail e ficam paralisados um tempo, aqueles que lêem Camões, Pessoa, Keats, Allen Ginsberg, ao lado de estantes repletas de livros. A poesia é pão quente para ser levado a todos.


Francisco Carvalho

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A Janarelli (fotografia rápida)



Tantas ruas, vielas, becos, avenidas, calçadas. O vento se junta à luz do sol e começaram a subir a Janarelli. As fumaças dos carros e as solas dos tênis sobem a rua. Todos os pensamentos e os cuspes escalam seu asfalto. As paredes param para olhar o movimento, as janelas querem subir mas estão paradas, entreabertas. Os postes, fixados, não podem subir/descer/subir. Não é uma rua qualquer. Nenhuma rua é qualquer. Está parada, mas anda. Mil espíritos, dores, alucinações, prestações, carinhos, sobem e descem. Ali um caõzinho foi atropelado. A dona viu e ficou paralisada para sempre. A rua logo apagou tudo e o vento se juntou à luz do sol e começou a subir a José Janarelli. Tantas ruas, vielas, becos, avenidas, calçadas.


Francisco Carvalho

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Saber viver



Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.


   Cora Coralina

Pessoanas (Do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa)


Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é nós mesmos- que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa.(...)
As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois 'amo-te' ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada uma quer dizer uma idéia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constiui a atividade da alma. (...)

Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)


Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, dei­xaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...


Possuímos a alma? — ouve-me em silêncio — Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas.

Que possuímos? Que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne húmida dos lábios perecíveis em mucosas; a própria cópula é um contacto apenas, um contacto esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer, de um corpo por outro corpo... que possuímos nós? Que possuímos?


Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa)



Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.

Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)


"Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-à assim como cresceu. Tudo é nada e a nossa dor nele."

Fernando Pessoa 

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)



Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que uma dor que nós temos. 

Fernando Pessoa

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Soneto 501 Urbaniversando


Feliz aniversário, Paulicéia!
Do Pátio do Colégio ao infinito,
o imenso não é feio nem bonito:
darás de megalópole uma idéia?

Tens cara de africana ou de européia?
Tens árvore de figo ou de palmito?
Tens catedral de taipa ou de granito?
Tens flor? É rosa, hortênsia ou azaléia?

Te tornas, ano a ano, mais mudada:
quem chega não se encontra com quem parte;
a rua não se avista da sacada.

Poetas não têm jeito de saudar-te;
tu, pois, que cantes, antes de mais nada,
que és obra, em fundo e forma, in progress: arte!




Glauco Mattoso
(Do livro "Paixão por São Paulo")

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Masp (ou a beleza)



Um ramo, um longo barco, duas mulheres. Num rio, passeando. Rio escuro como o Tietê. Um quadro de Monet na parede: "De canoa no Epte". Ele coça o nariz: Epte? Que isso? Ele segurança do Masp tanto mais viu os visitantes pararem ali e olharem. Também olha para ver a beleza que eles vêem. Nem é bonito. Não ser bonito pode ser beleza? O quadro que ele tinha em casa na Zona Leste era mais bonito na parede. Tal de Monet. As águas do rio não eram água, eram pinceladas, constatou apontando a lanterna. É madrugada. Como ver essa tal de beleza? Tem voltado inquieto no metrô. Por que eles vêem o que eu não vejo? Pedem para não tocar na obra. Será que o mistério da beleza estaria aí? Ergueu, trêmula, a mão que não segura a lanterna - toca o Epte, e toca o belo. E toca um alarme. Preso por tentar roubar um Monet. E sua beleza.

 
                     Francisco Carvalho

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Faixa de segurança





 Esse rosto que atravessa a faixa de segurança na Paulista é de quem ainda não pagou a conta de luz. Os olhos que ali vão são de quem detestaria ter filhos. Nos cabelos loiros há o shampoo de supermercado. Aquela que sonhara na faixa esqueceu a chave de casa. O velhinho vai tomar o remédio que acabou de comprar. O menino que atravessa a faixa conta cada listra branca. O grãozinho de pó dorme no asfalto. A gota de chuva se junta a ele. Os pés pisam milhares de gotas de chuva na faixa de segurança. Os olhos de Maria ali se encontram com o de João


Francisco Carvalho

Folhas

 Cada raio de um sol de meio dia alimenta uma folha da árvore na São João com a Ipiranga. Os poetas cantam o verde fotossintético, verde-broto ou mar, verde musgo, verde folíolos bebendo água e claridade. Mas no canteiro da São João o verde é triste. Nenhum vento limpa o bimbo verde-cinza. E os galhos descem contorcidos e duros, escuros, mortos de vida.  O carro dele pisou numa folha melancólica que caiu no asfalto. Ela grudou na roda, girou e fez o carro atropelar Maria. O corpo estendido entre folhas tristes sem poesia. Cada folha que cai mata Marias.


  Francisco Carvalho