terça-feira, 19 de julho de 2011

As mil e uma noites


Rugas, imensos sulcos de deserto. Naquela madrugada, a velhinha de 89 anos levantou-se da cama, encolheu-se de frio e morreu indo até o banheiro. Foi ainda na mesma hora que João, 73, e Maria, 89, acordando, abraçaram-se com medo da solidão. Nesse exato momento da noite, o cãozinho velho tentou afastar uma pulga do corpo já carcaça. E ninguém viu que nos olhinhos dele havia a maior dor do mundo. 
Esmeralda se pintava, aos 90 anos, em frente ao espelho, de madrugada. Queria dormir linda. Nessa noite Teodoro, no asilo, mijou na calça, mas não teve vontade de levantar, as mãos trêmula, os olhos vesgos abertos sempre. Aquele momento também foi o de Parecida, rezando o terço, tomando água benta para dormir, olhando para o crucifixo na parede, com medo de morrer. Velho como estava, Teobaldo deitado, nessa madrugada, sentia falta de ar. Levantava, caminhava sozinho pelos cômodos até se cansar, depois dormia. Na mesma noite,Senária, que era velha e morava sozinha numa imensa casa de dois andares, acendia as luzes de cada cômodo. Ela dizia que a morte, à noite, só vem no escuro. Com 64 anos, Frasquino preparou calmamente o veneno. Os filhos agradeceriam que o velho inválido moresse e os livrasse dos custos de remédios e internações. Veneno é vinho: tomou. Serena disse que, aos 77 anos, gostava de levantar na madrugada e abrir a janela e ver as luzes dos prédios, os poucos carros e o silêncio. Depois pensa em se atirar do 15º andar, mas adia sempre para o dia seguinte. De longe vem o solo de saxofone. A madrugada envelhece, aquela fronha, enruga os lençóes, tira a cor das peles.

Francisco Carvalho

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