quinta-feira, 30 de junho de 2011

Saber viver



Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.


   Cora Coralina

Pessoanas (Do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa)


Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é nós mesmos- que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa.(...)
As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois 'amo-te' ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada uma quer dizer uma idéia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constiui a atividade da alma. (...)

Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)


Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, dei­xaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...


Possuímos a alma? — ouve-me em silêncio — Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de serem almas.

Que possuímos? Que possuímos? Que nos leva a amar? A beleza? E nós possuímo-la amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa; o beijo não toca na beleza da boca, mas na carne húmida dos lábios perecíveis em mucosas; a própria cópula é um contacto apenas, um contacto esfregado e próximo, mas não uma penetração real, sequer, de um corpo por outro corpo... que possuímos nós? Que possuímos?


Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa)



Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.

Fernando Pessoa

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)


"Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-à assim como cresceu. Tudo é nada e a nossa dor nele."

Fernando Pessoa 

Pessoanas (Do "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa)



Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que uma dor que nós temos. 

Fernando Pessoa

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Soneto 501 Urbaniversando


Feliz aniversário, Paulicéia!
Do Pátio do Colégio ao infinito,
o imenso não é feio nem bonito:
darás de megalópole uma idéia?

Tens cara de africana ou de européia?
Tens árvore de figo ou de palmito?
Tens catedral de taipa ou de granito?
Tens flor? É rosa, hortênsia ou azaléia?

Te tornas, ano a ano, mais mudada:
quem chega não se encontra com quem parte;
a rua não se avista da sacada.

Poetas não têm jeito de saudar-te;
tu, pois, que cantes, antes de mais nada,
que és obra, em fundo e forma, in progress: arte!




Glauco Mattoso
(Do livro "Paixão por São Paulo")

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Masp (ou a beleza)



Um ramo, um longo barco, duas mulheres. Num rio, passeando. Rio escuro como o Tietê. Um quadro de Monet na parede: "De canoa no Epte". Ele coça o nariz: Epte? Que isso? Ele segurança do Masp tanto mais viu os visitantes pararem ali e olharem. Também olha para ver a beleza que eles vêem. Nem é bonito. Não ser bonito pode ser beleza? O quadro que ele tinha em casa na Zona Leste era mais bonito na parede. Tal de Monet. As águas do rio não eram água, eram pinceladas, constatou apontando a lanterna. É madrugada. Como ver essa tal de beleza? Tem voltado inquieto no metrô. Por que eles vêem o que eu não vejo? Pedem para não tocar na obra. Será que o mistério da beleza estaria aí? Ergueu, trêmula, a mão que não segura a lanterna - toca o Epte, e toca o belo. E toca um alarme. Preso por tentar roubar um Monet. E sua beleza.

 
                     Francisco Carvalho

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Faixa de segurança





 Esse rosto que atravessa a faixa de segurança na Paulista é de quem ainda não pagou a conta de luz. Os olhos que ali vão são de quem detestaria ter filhos. Nos cabelos loiros há o shampoo de supermercado. Aquela que sonhara na faixa esqueceu a chave de casa. O velhinho vai tomar o remédio que acabou de comprar. O menino que atravessa a faixa conta cada listra branca. O grãozinho de pó dorme no asfalto. A gota de chuva se junta a ele. Os pés pisam milhares de gotas de chuva na faixa de segurança. Os olhos de Maria ali se encontram com o de João


Francisco Carvalho

Folhas

 Cada raio de um sol de meio dia alimenta uma folha da árvore na São João com a Ipiranga. Os poetas cantam o verde fotossintético, verde-broto ou mar, verde musgo, verde folíolos bebendo água e claridade. Mas no canteiro da São João o verde é triste. Nenhum vento limpa o bimbo verde-cinza. E os galhos descem contorcidos e duros, escuros, mortos de vida.  O carro dele pisou numa folha melancólica que caiu no asfalto. Ela grudou na roda, girou e fez o carro atropelar Maria. O corpo estendido entre folhas tristes sem poesia. Cada folha que cai mata Marias.


  Francisco Carvalho