Naquele dia, quando se levantou, percebeu que estava morto.Tocou-se,ainda parecia ter carne.Levantou-se e foi até o espelho.Ainda estava ali, não era um vampiro.Então a morte é continuar sendo? Se era assim, melhor tomar banho.Que delícia a água quente, a beleza das gotículas na pele! Que maravilha, nunca percebida pela pressa, a maciez da toalha no corpo! Vestir a roupa,que atividade prazerosa! Morrer é continuar sendo...Mas ,se morreu, não ir ao trabalho.Não fazer nenhuma ação que não fosse prazer, vida após a morte.Ah, a brisa fresca no Parque do Ibirapuera, ah o movimento dos carros, ah um papel de bala levado pelo vento, ah o olhar daquela mulher que passou rápido, ah o céu tão azul.Ohhhhh um besouro morto na calçada, ohhhh mendigos sujos encostados na parede,ohh o cinza da cidade. Tudo isso não era vida dentro da morte ? Descobrir a luminosidade nas dobras de uma cortina, perceber a beleza na feiúra, vislumbrar/ouvir o som de uma porta que se abre.Apenas caminhar apreciando tudo.Morrer é ver tudo de novo sem ser Brás Cubas.É meio-dia e o sol vara todos os prédios e todas as plantas. São cinco horas e dá pra ver o silêncio. Já é noite e as paredes se apagam de vida.Então voltar para casa, deitar-se.Amanhã encontrarão o cadáver.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
UM POETA
O público em geral está acostumado com os poetas mais tradicionais, aqueles "aprendidos" na escola.Mas é sempre interessante conhecer outros bons e deliciosos poetas.Affonso Romano de Sant'Anna é um desses.Começou carreira entre o final da década de 50 e início de 60, deu aulas na UCLA(Califórnia),dirigiu o Departamento de Letras da PUC/RJ, substituiu Carlos Drummond de Andrade como cronista no Jornal do Brasil,diretor da Biblioteca Nacional, e muito mais.Mas acima de tudo foi um grande poeta.A editora L&PM lançou antologia de bolso de seus poemas:"Poesia Reunida".Se ainda não conhecem,melhor conhecer antes de morrer.Em várias bancas da cidade de São Paulo seus poemas estão espalhados, que poesia deve se espalhar assim.Um poema:" PEDES EXPLICAÇÃO/ Pedes explicações, que não sei dar,/sobre meu jeito de amar./Soubesse das razões por que te amo/deste modo/poderia também me apaziguar./Sou assim:/um gato na poltrona/aos teus pés/ou um tigre que, faminto,/carinhosamente/-vem te devorar". Mas não é só da temática amorosa os variantes temas do poeta.Outro poema curto: "VIVA FERA"/Não me canso de estudar a morte./Como é fértil e reverbera novos ângulos/conforme a hora em que a entrevejo/na minha trajetória.//Preencho-a de significados vários./Ela cresce, me fascina, me enriquece,/me habita viva feito fera/que parece domesticada e,no entanto,/soberana/-mansamente me devora". É melhor correr pras bancas!
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
FILMES SOBRE POETAS
Fazer documentários sobre poetas brasileiros é sempre algo complicado. Além de serem raros, existe sempre a tentação de biografar apenas, dando privilégio ao autor e não ao texto. Aconteceu, por exemplo, com o filme sobre Vinícius de Moraes, "Vinícius", de Miguel Faria Jr. ,em que se privilegia a biografia do autor, carregando no estilo depoimentos de famosos sobre.Muitos outros seguem por essa linha, provavelmente porque seus diretores nem leram o autor ou não acreditem ser possível lidar com poesia e audiovisual.Pode-se pensar ainda que é mais comercial trabalhar com as vidas polêmicas de autores do que com os textos.Pois esses diretores estão errados. O documentário "Só dez por cento é mentira", de Pedro Cezar, demonstra que é possível retratar um poeta dando espaço maior para seus textos.Pablo neruda, poeta chileno, dizia que os poetas não têm biografia, que a biografia deles era sua obra. Entendendo essa questão, o diretor Pedro Cezar filma a obra-biografia de Manuel de Barros, dando destaque total aos poemas. Parte de uma "biografia inventada", como quer o próprio poeta, daí a justificativa do título tirado de um verso de Manuel. Os versos são escritos na tela e o leitor vai lendo, maravilhando-se com o texto. Com isso, foge-se de usar o clichê de por algum ator lendo/declamando .Como fundo, closes generosos em lápis coloridos sendo apontados para escrever poemas, closes em cascas de árvores, a câmera caminhando por paredes velhas e emboloradas, closes em musgos, latas velhas de sardinha, pneus velhos. Segue a ideia do poeta: "só as coisas rasteiras me celestam". Os especialistas aparecem dando sua opinião mas não são identificados, fugindo de um intelectualismo que talvez Manuel odiasse. E o diretor consegue a proeza de entrevistar o poeta, que geralmente não concede entrevista.O filme é chamado de desbiografia.E consegue, com recursos audiovisuais mais o texto, dar uma ideia da grandeza/pequenez desse poeta. Não deixe de assistir.Já existe em dvd.
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